As ações com voto plural potenciam mais um motivo para enfrentar o tema tabu da sucessão nas empresas familiares.

No final de 2021 foi aprovada uma atualização ao Código de Valores Mobiliários (CVM), expressa na Lei n. 99-A/2021, de 31 de dezembro. Umas das alterações estabelece que as sociedades emitentes de ações, admitidas a negociação podem emitir ações com direito especial ao voto plural, até ao limite de cinco votos por cada ação. Ou seja, uma sociedade pode ter o seu capital constituído por ações ordinárias com determinados direitos económicos (normalmente obtidos via dividendos ou valorização) e por ações com um direito especial de votos (a variar entre um e cinco).

Esta possibilidade tem sido sobejamente utilizada pelas empresas start-ups, para permitir que os seus fundadores possam manter um controlo da gestão, com posições minoritárias de capital, e, em simultâneo, facilitar entrada de acionistas que estão essencialmente interessados na valorização dos seus investimentos.

Na apresentação do IPO (Oferta Pública de Venda), em 2018, a Farfetch – 1ª unicórnio de origem portuguesa – salientava que, após a operação, o seu capital consideraria dois categorias de ações ordinárias, Classe A e Classe B, sendo que os seus titulares possuiriam direitos idênticos, exceto no relativo aos direitos de voto e de conversão.

Assim, cada ação Classe A terá direito a um voto por ação e não será passível de conversão em nenhuma outra categoria de ações e, cada ação B, assumirá direito de 20 votos e a possibilidade de ser conversível a qualquer momento numa ação Classe A.

Após a venda das ações Classe A em bolsa (e outras operações em paralelo com a chinesa JD.com e a Artemis da família Pinault), José Neves, fundador e CEO da empresa, deterá cerca de 78% dos direitos de voto.

 

A alteração aprovada vai originar muitos desafios práticos, seja na integração com a legislação em vigor, algo que os juristas e académicos já estarão a analisar, seja em processos de sucessão nas empresas familiares, aspeto salientado por Isabel Ucha, presidente da Euronext Lisbon.

Sobre esta temática, muito impactante nas sociedades familiares, destacam-se três pontos – somente um nº reduzido estão cotadas; a maioria são sociedades por quotas e existem muitas alternativas com o mesmo objetivo de diferenciar os sócios – que merecem uma análise mais pormenorizada.

    1. A bolsa nacional possui um número reduzido de empresas listadas sendo, contudo, uma parte significativa de controlo familiar (Conduril, Corticeira Amorim, Galp Energia, Jerónimo Martins, Mota-Engil, Semapa, Sonae, Vista Alegre, entre outras) e para as quais se apresenta esta oportunidade. No entanto, como para viabilizar tal possibilidade é necessário que os estatutos o prevejam, algo que não acontece e que, para ocorrer, implicará reunir o número de votos suficiente para a sua alteração, não se vislumbra no curto prazo uma significativa adoção.
    2. O mercado português é caracterizado pela existência de mais de 1,3 milhões de empresas – dois terços das quais individuais e as restantes sociedades – com uma dimensão muito reduzida: 96% são microempresas e somente 0,1% são classificadas como grandes (fontes: INE e Pordata, 2021 e para dados referentes a 2019) – e só um reduzido número são sociedades anónimas. Nesta realidade, e mesmo que a política de voto plural fosse alargada ao universo das empresas não cotadas, o seu impacto continuaria a ser muito diminuto.
    3. A legislação atual disponibiliza algumas possibilidades de diferenciação de capital:
      • O contrato de sociedade pode autorizar a emissão de ações preferenciais sem direito de voto, até ao montante representativo de metade do capital social (art. 341.º CSC), com direito a um dividendo prioritário não inferior a 1 % do respetivo valor nominal, e ao reembolso prioritário na liquidação da sociedade.
      • Nas sociedades por quotas os direitos especiais de natureza patrimonial são transmissíveis com a quota respetiva, sendo intransmissíveis os restantes direitos e, nas sociedades anónimas, os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de ações e transmitem-se com estas (n.º 3 e 4 do art. 24.º CSC).
      • As deliberações dos sócios podem adotar múltiplas combinações com recurso às percentagens de votos necessárias a determinadas deliberações, às possibilidades de veto, ou outras imaginativas soluções.

Para desenhar processos de sucessão na propriedade e na liderança de uma sociedade, existe uma amplitude e variedade de possibilidades que podem ser pactadas, somente limitadas pela criatividade e desejos dos seus acionistas (para além de não irem contra as disposições asseguradas por lei).

A título ilustrativo atente-se às disposições no pacto social da sociedade holding de uma família empresária que, aquando da sua constituição, considerou aspetos como:

    • A existência de diversas categorias de ações: ordinárias, categoria A e B;
    • As ações de categoria B, detidas pelos fundadores, ficarem sujeitas a remição aquando da sua morte;
    • A transmissão inter-vivos apenas ser possível em favor dos descendentes;
    • As ações ordinárias que por morte do titular sejam transmitidas a pessoas não descendentes, ou fiquem na posse do respetivo cônjuge, serem obrigatoriamente amortizadas;
    • A existência de ações de categoria B limitar o número máximo de votos por titular de ações;
    • As deliberações em Assembleia Geral de Acionistas possuírem diversas variantes que conjugam a questão de ser, ou não, 1.ª convocação, percentagens mínimas de votos globais ou de determinadas categorias de ações, entre outras particularidades;
    • Os descendentes poderem ser membros do conselho de administração, mas sujeitos a condicionantes como a idade e aptidões;
    • A dissolução da sociedade considerar elementos como posições acionistas, características de membros da Administração, etc.

 

Finalmente salientar que se a existência de categorias diferentes de ações possibilita uma panóplia de cenários diferenciadores dos acionistas, também implica uma especial atenção em processos sucessórios, no sentido de assegurar a sua passagem a quem realmente se deseja e prever a sua conversão ou extinção.

Sejam grandes empresas ou PME, o tema da sucessão nas empresas familiares – para além de assegurar a competitividade no mercado concorrencial – é dos mais relevantes para assegurar a sua continuidade geracional (ou no limite em mãos de outros acionistas), pelo que não deve ser deixado aos destinos de ocorrências naturais.

A incapacidade ou morte atribuem a propriedade aos sucessores legais, no entanto, não asseguram que os mesmos estão preparados para esta sua condição, nomeadamente de assumirem a liderança da sociedade ou de nomearem gestores adequados e a quem atribuam linhas orientadoras para a condução dos negócios.

A família empresária® não deve encarar a sucessão como tabu, mas enfrentá-la de forma direta e adequada, promovendo o debate, planeamento e preparação dos intervenientes para um nada fácil processo de coexistência geracional e de passagem de testemunho. O processo de desenvolvimento de um protocolo familiar é um momento muito oportuno para esta reflexão e definição.

As pessoas mais diretamente envolvidas – sucessor e sucedido –, a empresa e todos os seus stakeholders, agradecerão e ressurgirão mais fortes para conquistar o futuro.

Tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,